terça-feira, 14 de dezembro de 2010

D.José...velhinho José...menino José...

Servo bom fiel, entra no gozo do teu Senhor

1. Já não sei, amigo, quando te conheci pela primeira vez.
Mas sempre te conheci velhinho e sábio. Como um menino. Velhinho não rima com ciúme ou azedume, mas com carinho. Sempre te conheci assim: próximo, afectuoso, sempre a inventar maneiras de ajudar.
Sábio foste, certamente temperado pelo amor da sabedoria, mas mais, muito mais, pela sabedoria do amor.
Velhinho e sábio como um menino, porque me parece que seguiste exactamente a trajectória do Evangelho: «Se não vos tornardes como as crianças, não entrareis no Reino dos Céus». É assim que te vejo, amigo, velhinho como um menino, que ri, brinca, teima e sonha. Parece-me, por isso, que te sentirás em casa no Reino de Deus, onde seguramente estarás a contar histórias, a recitar terços sem conta, a repassar as bem-aventuranças uma a uma e as muito mais do que catorze obras de misericórdia. Fica-me apenas uma dúvida: contigo aí no céu do bom Deus a entreter os anjos, pode acontecer que fiquemos nós aqui na terra mais desprotegidos.

2. «FELIZ o homem (…) que a instrução do Senhor recita dia e noite, com prazer» (Salmo 1,1-
2).
FELIZES, FELIZES, FELIZES, felicitação nove vezes repetida (Mateus 5,3-10), como se uma vez
não bastasse para dizer quanto Deus ama os pobres e os que têm um coração cheio de bondade e
mansidão! FELIZES os pobres de espírito, não de Espírito Santo ou de inteligência, mas os que não têm espaço nem alento próprio, e tudo têm de receber sempre de ti, bom Deus e Pai. FELIZES os que vivem ao ritmo do teu alento, do teu vento criador e embalador. FELIZES, FELIZES, FELIZES – ’ashrê, ’ashrê, ’ashrê – na língua hebraica. Mas ’ashrê significa ainda, e talvez sobretudo, pioneiros, abridores de caminhos novos e belos e floridos, como aqueles que tu, bom Deus, abriste e continuas a abrir na aridez dos nossos desertos!

3. D. José, velhinho José, menino José, tu foste um pioneiro, um abridor de caminhos no mundo
da missão. Apareceste por graça neste mundo em 16 de Abril de 1913, por graça entraste no então
Colégio das Missões de Tomar em 14 de Outubro de 1925, por graça recebeste a ordenação sacerdotal em 25 de Julho de 1938, por graça embarcaste em 13 de Novembro de 1945 no porto de Leixões rumo às Missões de Moçambique. Por graça fizeste, ou alguém fez por ti, florir a bela e querida Missão de Mutuáli, um brinde, um oásis no deserto. Por graça recebeste a ordenação Episcopal em 16 de Junho de 1957, e por graça foste o primeiro Bispo da recém-criada Diocese de Porto Amélia, actual Pemba.
Foste pioneiro. Como missionário, foste pioneiro. Semeaste e regaste o chão africano, ergueste um Seminário (o primeiro de Moçambique), fundaste a primeira Congregação Religiosa de Moçambique (as Filhas do Coração Imaculado de Maria), levantaste internatos, centros de saúde e escolas de formação onde se prepararam muitos e bons catequistas. Semeaste, alimentaste e regaste o chão e a alma do bom povo moçambicano que o bom Deus te confiou. Foste um pioneiro, amigo e irmão, pobre e santo.
Por paradoxal que pareça, sempre foram os Santos e os Pobres que abriram caminhos novos neste mundo desertificado, enlatado, dormente e anestesiado em que vivemos.

4. Nas circunstâncias difíceis da guerra e da violência, não ficaste deitado à beira da estrada,
como os «cães mudos» sonolentos e embriagados de Isaías 56,10. Não o podias fazer, tu, sensibilíssimo amigo e pastor atento, quando os teus filhos sofriam. Intervieste, surpreendeste, teimaste, exigiste. A tanto te obrigava o teu coração de Pai e de menino irreverente, mas sempre sorridente.

5. Não tenho dúvidas de que o bom Deus estava contigo e te amparava. Gostava de ti, estava
contigo. Quando tu não querias participar nas sessões do Concílio II do Vaticano, forçou-te a ir, para te salvar de outra maneira. Adoeceste gravemente, e passaste grande parte do Concílio no hospital. O bom Deus ainda te queria no meio de nós por muito tempo. O teu sorriso e a tua ternura e premura eram ainda necessários para continuares a dizer e mostrar Deus na tua terra natal, Aldeia do Souto, na Diocese da Guarda, na Sociedade Missionária que sempre amaste dedicadamente. Por todos estes lugares onde passaste após a tua resignação como Bispo de Porto Amélia em 31 de Janeiro de 1975, continuaste a fazer desabrochar flores de paz em muitos corações.

6. Saúdo-te, fiel engenheiro de Deus, D. José, velhinho José, menino José, intrépido missionário
a tempo inteiro. Como pertences totalmente ao Senhor, o Senhor é também a tua herança. És pobre e FELIZ, ó pioneiro, abridor de caminhos novos. Rezamos por ti, amigo. Intercede tu também por nós junto do bom Deus e de Maria. Mas não a ocupes com muitos terços nem retenhas contigo os anjos todos. Tu sabes que precisamos tanto de um olhar de mãe e de alguns anjos que nos assistam nos difíceis caminhos deste tempo.

Cucujães, 13 de Dezembro de 2010, memória de Santa Luzia
+ António Couto

Homilia nas exéquias de D. José dos Santos Garcia

Sem comentários:

Enviar um comentário