sexta-feira, 4 de março de 2011

Não estás deprimido, estás distraido...

Não estás deprimido, estás distraído.

Distraído em relação à vida que te preenche, distraído em relação à vida que te rodeia, golfinhos, bosques, mares, montanhas, rios.
Não caias como caiu teu irmão que sofre por um único ser humano, quando existem cinco mil e seiscentos milhões no mundo. Além de tudo, não é assim tão ruim viver só. Eu fico bem, decidindo a cada instante o que desejo fazer, e graças à solidão conheço-me. O que é fundamental para viver.
Não faças o que fez teu pai, que se sente velho porque tem setenta anos, e esquece que Moisés comandou o Êxodo aos oitenta e Rubinstein interpretava Chopin com uma maestria sem igual aos noventa, para citar apenas dois casos conhecidos.

Não estás deprimido, estás distraído.
Por isso acreditas que perdeste algo, o que é impossível, porque tudo te foi dado. Não fizeste um só cabelo de tua cabeça, portanto não és dono de coisa alguma. Além disso, a vida não te tira coisas: te liberta de coisas, alivia-te para que possas voar mais alto, para que alcances a plenitude.
Do útero ao túmulo, vivemos numa escola; por isso, o que chamas de problemas são apenas lições. Não perdeste coisa alguma: aquele que morre apenas está adiantado em relação a nós, porque todos vamos na mesma direção.
E não esqueças, que o melhor dele, o amor, continua vivo em teu coração.
Não existe a morte, apenas a mudança.
E do outro lado te esperam pessoas maravilhosas: Gandhi, o Arcanjo Miguel, Whitman, São Agostinho, Madre Teresa, teu avô e minha mãe, que acreditava que a pobreza está mais próxima do amor, porque o dinheiro nos distrai com coisas demais, e nos machuca, porque nos torna desconfiados.
Faz apenas o que amas e serás feliz. Aquele que faz o que ama, está benditamente condenado ao sucesso, que chegará quando for a hora, porque o que deve ser será, e chegará de forma natural.
Não faças coisa alguma por obrigação ou por compromisso, apenas por amor.
Então terás plenitude, e nessa plenitude tudo é possível sem esforço, porque és movido pela força natural da vida. A mesma que me ergueu quando caiu o avião que levava minha mulher e minha filha;
a mesma que me manteve vivo quando os médicos me deram três ou quatro meses de vida.
Deus te tornou responsável por um ser humano, que és tu. Deves trazer felicidade e liberdade para ti mesmo.
E só então poderás compartilhar a vida verdadeira com todos os outros.
Lembra-te: "Amarás ao próximo como a ti mesmo".
Reconcilia-te contigo, coloca-te frente ao espelho e pensa que esta criatura que vês, é uma obra de Deus, e decide neste exato momento ser feliz, porque a felicidade é uma aquisição.
Aliás, a felicidade não é um direito, mas um dever; porque se não fores feliz, estarás levando amargura para todos os teus vizinhos.
Um único homem que não possuiu talento ou valor para viver, mandou matar seis milhões de judeus, seus irmãos.
Existem tantas coisas para experimentar, e a nossa passagem pela terra é tão curta, que sofrer é uma perda de tempo.
Podemos experimentar a neve no inverno e as flores na primavera, o chocolate de Perusa, a baguette francesa, os tacos mexicanos, o vinho chileno, os mares e os rios, o futebol dos brasileiros, As Mil e Uma Noites, a Divina Comédia, Quixote, Pedro Páramo, os boleros de Manzanero e as poesias de Whitman; a música de Mahler, Mozart, Chopin, Beethoven; as pinturas de Caravaggio, Rembrandt, Velázquez, Picasso e Tamayo, entre tantas maravilhas.
E se estás com câncer ou AIDS, podem acontecer duas coisas, e ambas são positivas:
se a doença ganha, te liberta do corpo que é cheio de processos (tenho fome, tenho frio, tenho sono, tenho vontades, tenho razão, tenho dúvidas)
Se tu vences, serás mais humilde, mais agradecido... portanto, facilmente feliz, livre do enorme peso da culpa, da responsabilidade e da vaidade,
disposto a viver cada instante profundamente, como deve ser.

Não estás deprimido, estás desocupado.
Ajuda a criança que precisa de ti, essa criança que será sócia do teu filho. Ajuda os velhos e os jovens te ajudarão quando for tua vez.
Aliás, o serviço prestado é uma forma segura de ser feliz, como é gostar da natureza e cuidar dela para aqueles que virão.
Dá sem medida, e receberás sem medida.
Ama até que te tornes o ser amado; mais ainda converte-te no próprio Amor.
E não te deixes enganar por alguns homicidas e suicidas.
O bem é maioria, mas não se percebe porque é silencioso.
Uma bomba faz mais barulho que uma caricia, porém, para cada bomba que destrói há milhões de carícias que alimentam a vida.
(Facundo Cabral)

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

SONHA TAMBÉM

Há dois mil anos Deus sonhou
E foi
Natal em Belém.
Sonha também.
Se o jumento corou
E o boi se ajoelhou,
Não deixes tu de orar também.

1. A notícia ecoou nos campos de Belém. Com o celeste recital que ali se deu, o céu ficou ao léu, a terra emudeceu de espanto, e os pastores dançaram tanto, tanto, que até os mansos animais entraram nesse canto.

2. Isaías 1,3 antecipou a cena, e gravou com o fulgor da sua pena o manso boi e o pacífico jumento comendo as flores de açucena da vara de José sentado ao lume, e bafejando suavemente depois o Menino de perfume. Enquanto os meigos animais vão comer à mão do dono, o meu povo, diz Deus, não me conhece, e perde-se nos buracos de ozono.

3. Nos campos lavrados passeiam cotovias, ondulam os trigais, e vê-se Rute a respigar o trigo ao lado dos pardais. Que estação é esta que reúne as estações e os anais? Abre-se ali num instante um caminho novo. Vê-se que passam Maria e José e o Menino, que salta logo do colo e suja as mãos na terra, tira da sacola estrelas todas de oiro, e semeia-as na terra com carinho.

4. Anda à sua volta um bando de boieiras, leves e ledas companheiras, correndo no mesmo chão de oiro semeado. E nós continuamos a passar ali ao lado daquela sementeira toda de oiro, que o Menino pobre acaricia, e logo se transforma em trigo loiro. Ninguém pára, ninguém acredita que o Menino pode ser dono de um tal tesoiro.

António Couto

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

D.José...velhinho José...menino José...

Servo bom fiel, entra no gozo do teu Senhor

1. Já não sei, amigo, quando te conheci pela primeira vez.
Mas sempre te conheci velhinho e sábio. Como um menino. Velhinho não rima com ciúme ou azedume, mas com carinho. Sempre te conheci assim: próximo, afectuoso, sempre a inventar maneiras de ajudar.
Sábio foste, certamente temperado pelo amor da sabedoria, mas mais, muito mais, pela sabedoria do amor.
Velhinho e sábio como um menino, porque me parece que seguiste exactamente a trajectória do Evangelho: «Se não vos tornardes como as crianças, não entrareis no Reino dos Céus». É assim que te vejo, amigo, velhinho como um menino, que ri, brinca, teima e sonha. Parece-me, por isso, que te sentirás em casa no Reino de Deus, onde seguramente estarás a contar histórias, a recitar terços sem conta, a repassar as bem-aventuranças uma a uma e as muito mais do que catorze obras de misericórdia. Fica-me apenas uma dúvida: contigo aí no céu do bom Deus a entreter os anjos, pode acontecer que fiquemos nós aqui na terra mais desprotegidos.

2. «FELIZ o homem (…) que a instrução do Senhor recita dia e noite, com prazer» (Salmo 1,1-
2).
FELIZES, FELIZES, FELIZES, felicitação nove vezes repetida (Mateus 5,3-10), como se uma vez
não bastasse para dizer quanto Deus ama os pobres e os que têm um coração cheio de bondade e
mansidão! FELIZES os pobres de espírito, não de Espírito Santo ou de inteligência, mas os que não têm espaço nem alento próprio, e tudo têm de receber sempre de ti, bom Deus e Pai. FELIZES os que vivem ao ritmo do teu alento, do teu vento criador e embalador. FELIZES, FELIZES, FELIZES – ’ashrê, ’ashrê, ’ashrê – na língua hebraica. Mas ’ashrê significa ainda, e talvez sobretudo, pioneiros, abridores de caminhos novos e belos e floridos, como aqueles que tu, bom Deus, abriste e continuas a abrir na aridez dos nossos desertos!

3. D. José, velhinho José, menino José, tu foste um pioneiro, um abridor de caminhos no mundo
da missão. Apareceste por graça neste mundo em 16 de Abril de 1913, por graça entraste no então
Colégio das Missões de Tomar em 14 de Outubro de 1925, por graça recebeste a ordenação sacerdotal em 25 de Julho de 1938, por graça embarcaste em 13 de Novembro de 1945 no porto de Leixões rumo às Missões de Moçambique. Por graça fizeste, ou alguém fez por ti, florir a bela e querida Missão de Mutuáli, um brinde, um oásis no deserto. Por graça recebeste a ordenação Episcopal em 16 de Junho de 1957, e por graça foste o primeiro Bispo da recém-criada Diocese de Porto Amélia, actual Pemba.
Foste pioneiro. Como missionário, foste pioneiro. Semeaste e regaste o chão africano, ergueste um Seminário (o primeiro de Moçambique), fundaste a primeira Congregação Religiosa de Moçambique (as Filhas do Coração Imaculado de Maria), levantaste internatos, centros de saúde e escolas de formação onde se prepararam muitos e bons catequistas. Semeaste, alimentaste e regaste o chão e a alma do bom povo moçambicano que o bom Deus te confiou. Foste um pioneiro, amigo e irmão, pobre e santo.
Por paradoxal que pareça, sempre foram os Santos e os Pobres que abriram caminhos novos neste mundo desertificado, enlatado, dormente e anestesiado em que vivemos.

4. Nas circunstâncias difíceis da guerra e da violência, não ficaste deitado à beira da estrada,
como os «cães mudos» sonolentos e embriagados de Isaías 56,10. Não o podias fazer, tu, sensibilíssimo amigo e pastor atento, quando os teus filhos sofriam. Intervieste, surpreendeste, teimaste, exigiste. A tanto te obrigava o teu coração de Pai e de menino irreverente, mas sempre sorridente.

5. Não tenho dúvidas de que o bom Deus estava contigo e te amparava. Gostava de ti, estava
contigo. Quando tu não querias participar nas sessões do Concílio II do Vaticano, forçou-te a ir, para te salvar de outra maneira. Adoeceste gravemente, e passaste grande parte do Concílio no hospital. O bom Deus ainda te queria no meio de nós por muito tempo. O teu sorriso e a tua ternura e premura eram ainda necessários para continuares a dizer e mostrar Deus na tua terra natal, Aldeia do Souto, na Diocese da Guarda, na Sociedade Missionária que sempre amaste dedicadamente. Por todos estes lugares onde passaste após a tua resignação como Bispo de Porto Amélia em 31 de Janeiro de 1975, continuaste a fazer desabrochar flores de paz em muitos corações.

6. Saúdo-te, fiel engenheiro de Deus, D. José, velhinho José, menino José, intrépido missionário
a tempo inteiro. Como pertences totalmente ao Senhor, o Senhor é também a tua herança. És pobre e FELIZ, ó pioneiro, abridor de caminhos novos. Rezamos por ti, amigo. Intercede tu também por nós junto do bom Deus e de Maria. Mas não a ocupes com muitos terços nem retenhas contigo os anjos todos. Tu sabes que precisamos tanto de um olhar de mãe e de alguns anjos que nos assistam nos difíceis caminhos deste tempo.

Cucujães, 13 de Dezembro de 2010, memória de Santa Luzia
+ António Couto

Homilia nas exéquias de D. José dos Santos Garcia

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

VIVE A MISSÃO, RASGA HORIZONTES

Na página em branco
poisam as palavras:
amor, paz, pão, comunicação.
Na página em branco
poisam as estradas,
pontes, horizontes, escolas para o meu irmão:
hifenização.
Na página em branco
poisam os sorrisos, os sonhos, a missão:
a ternura de um Deus que quis precisar da minha mão.
Um vinco na página, uma dobra,
transforma as palavras em mensagens,
que a aragem do Espírito fará chegar a ti.
Evengelização, missão coração a coração.
Abres a página dobrada sobre o vinco:
As palavras saltarão para o teu colo,
para o teu rosto, para o teu regaço,
para o teu sorriso, para a tua mão.
Estão vivas as palavras, meu irmão,
estão vivas.
Acordam quando tu as lês,
todos os dias,
quando descobres a página, o coração,
onde dormem suavemente enternecidas.
Vai, meu irmão!
Vai, minha irmã!
Não deixes para amanhã
a beleza dos teus passos sobre os montes:
Vive a missão, rasga horizontes!
(D.António Couto)

HINO AOS LEIGOS BOA NOVA

Somos céu de esperança
onde vivemos,
e levamos estrelas cintilantes,
à noite fria,
de quem sonha olhar para lá do arame farpado,
e cantar a doce canção do sorriso partilhado.

Somos alento e denúncia
que grita aos ouvidos dos poderosos,
a brisa suave dos que pedem em segredo
a côdea de pão que a vida lhes negou.

Somos deserto e silêncio
de um Deus que canta
nas melodias das nossas mãos,
para que haja a harmonia entre os irmãos.

Aproveitamos a vida
para nela voar
e chegarmos aos olhos de quem já não chora
por não ter mais lágrimas para chorar.

Somos a revolução transformada em hinos de amor
para lavar os lençóis de vento,
que as armas da guerra sujaram com dor.

Somos laços de amizade
responsabilidade e sinceridade,
para que onde quer que estejamos haja Verdade.

Vivemos de mãos dadas
nas planícies, nos vales e nas cumeeiras,
para construirmos um mundo sem fronteiras.
                                Por Pe. João Torres