terça-feira, 25 de agosto de 2009

A rosa do Sr. Baltazar

Numa noite de silêncio calmo e alegre, parei o meu navio nas águas agitadas da minha existência. Abri porta e fui espiar um barulho frio que havia ao fundo do corredor da minha alma. Fui de devagar para não tropeçar nas minhas recordações alegres, mas com a ânsia de esmagar aquelas que me impediam de ser feliz. O barulho levava-me a recordar uma história triste que tinha acontecido comigo há muitos anos.

Todas as manhãs na minha aldeia de Arco de Baúlhe, ia buscar o pão para a minha mãe e para alguns vizinhos. Morava numa casa que ficava num alto e de lá podia contemplar o mundo, o azul do céu e o verde das montanhas. Às vezes chovia muito e o vento assobiava sempre as mesmas canções. Como era agradável estar no quentinho da cama ouvir o solista do vento acompanhado com orquestra da chuva.

Quando ia ao padeiro ia sempre a correr pois tinha a esperança de correr tanto como o Emil ZatopeK, que apenas numa semana ganhou os 5000 e 10000 metros e a maratona. Tinha sobre ele uma vantagem: é que eu conseguia correr e sorrir ao mesmo tempo, ele não tinha esse talento.

Passava todos os dias à porta do Sr. Baltazar, um velho com cara de pai-natal, com um sorriso que me iluminava por dentro, mesmo nos dias de chuva e de frio. Dizia sempre as mesmas palavras: “olá menino Jorge, como tens passado?” Muito Bem Sr. Baltazar e o Senhor? Respondia eu, mas ele nunca respondia à minha pergunta, dava sempre um sorriso. Sempre que ia ao padeiro tinha que ver aquele avô, que arranjei por afinidade, ninguém sabia, só eu. Às vezes ele tinha a porta fechada, mas eu esperava que ele a abrisse, só para ver o sorriso dele e a pergunta do costume.

Um dia vi muita gente à porta do Sr. Baltazar, fiquei assustado e quis saber o que se passava. Subia as escadas ladeadas de musgo e passei pelo meio daquela multidão, sem dizer nada a ninguém. Tinha entrado para a cozinha, mas ele não estava a li e continuei a procurar, foi ao quarto, mas ele também não estava lá. Fui à sala e vi um caixote muito grande e lá dentro estava ele. O Sr. Baltazar, meu companheiro de todas as manhãs, meu avô, estava morto. Fiquei muito triste, durante semanas esperava que a porta se abrisse, mas o meu amigo não vinha.Só
depois descobri que, quando alguém morre não vem mais.

Numa manhã faltei as aulas, para ir falar com o meu amigo à sua nova morada. Cheguei lá, tentei procurar onde ficava a casa dele, mas não descobri. Então perguntei a um senhor que andava por lá a fazer um buraco na terra e ele logo me indicou. Era um quadrado de terra com uma pedra branca por cima e tinha outra pedra ao alto com uma fotografia num dos cantos e no meio estas letras. “aqui jaz Baltazar Oliveira dos Santos, nasceu em 28-05-1910, morreu em 12-11-1988. Tinha uma jarra de flores secas que cheiravam muito mal.


Fiquei triste ao ver aquilo tudo, colocaram o meu avô num sítio que não tem nada a ver com ele. Onde estava o sorriso dele, no meio daquelas pedras todas? Ele que dava tudo para que os outros vivessem felizes. Quem deu tudo o que tinha deixou de ser ele para ser eternidade. Esses não terão epitáfios em pedras brancas, porque não haverá nada que consiga dizer o que eles ainda são.


Os cemitérios nunca deveriam ter flores cortadas em jarras que cheiram mal nem pedras pesadas, mas rosas plantadas e regadas com amor, para perpetuar o cheiro de vida daqueles que nos deixaram. Como seria bom alguém dizer:“Hoje vou regar a rosa do Sr. Baltazar, para que o jardim da minha vida tenha mais perfume e não me traga aquela tristeza melancólica”.


Fico triste quando visito aquele dormitório de camas pesadas que parece um campo de pedras refugiadas, com letras velhas e retratos sujos. Tratamos tão mal os sorrisos daqueles que passaram para lá do muro da vida. Uma rosa plantada chegava, porque outros haveriam de plantar também a nossa rosa. Antes de voltar á cama, depois desta história, escrevi num papel, para mais tarde recordar:


Fui-te ver onde os homens colocaram tua armadura terrestre.


Não tinhas sombra de flores nem velas de cores a perpetuar o humano que fostes.


A simplicidade das ervas daninhas tomaram conta de um pedaço de terra que tem o teu nome.


Fico contente por saber que não moras aí.Seria pouco para quem amou muito.


Vim só ver se tens o teu retrato limpo.



por Torres Campos em "Diário do Minho"