[Comentário: IV Dom Tempo Comum. Ano – C: 31-01-2010]
Ler: Lucas 4,21-30
Disposição (pode não ser lida...)
Dizem, e é verdade existencial, que é a Palavra que nos lê a nós seus leitores (na expressão consagrada ‘Ouvintes da Palavra’). Esta meditação tem uma dimensão inaudita. Como gostava de ser eu (oh peso estúpido do eu...) seu autor. Não sou. Mas vivo assim (e já vivi e viverei, futuramente, ainda mais) tudo o que ela encerra. Só isso importa. Entretanto, intuímos que há textos fundantes (guardo alguns, poucos, debaixo dos olhos/pés da consciência). Esta meditação na minha fragilidade/fortaleza, é um desses textos-alicerce. Dom Bernardo BONOWITZ (*) roubou-me a minha Alma... Saiba porquê. Quem encontrá-La, faça favor: devolva!?
“Levaram-no até o alto do monte sobre o qual a cidade estava construída, com a intenção de lançá-lo no precipício. Jesus, porém, passou no meio deles e continuou seu caminho” (Lc 4, 29-30).
“Se a gente tenta visualizar a situação na qual Jesus se encontrava no fim do Evangelho de hoje, é muito difícil imaginar aquele meio pelo qual Ele teria passado. Que Ele passou por um aperto, isto sim, mas como é que Ele conseguiu descobrir um meio, por meio do qual pôde passar, parece quase milagroso. E, de fato, acho que podemos chamar essa ação de Jesus de seu primeiro milagre – não um milagre físico, nem um milagre “miraculoso”, no sentido de ser consequência de uma intervenção divina, mas um milagre moral.
E o que é um milagre moral? É muito importante nós sabermos, porque é mais do que provável que o milagre moral venha a ser exatamente o tipo de milagre que todos nós iremos experimentar, e mais nenhum. Um milagre moral é uma decisão, uma postura, uma atitude boa, que a princípio não seria possível em dadas circunstâncias, mas acaba sendo. Num outro texto, Jesus diz que o homem bom tira coisas boas do bom tesouro de seu coração, e é assim que o milagre moral funciona. Colocado num aperto, em apuros, entre a cruz e a espada, onde aparentemente a única opção é ser jogado no precipício, o ser humano encontra – ou melhor, cria – um espaço que não existia antes. Vivia uma situação que era destruição garantida e, de alguma maneira, percebe a linha finíssima sobre a qual pode caminhar com segurança. E toma essa linha, segue-a, e continua sua peregrinação.
Esse espaço, esse meio, é difícil, terrivelmente difícil, de encontrar. Falo como alguém que, como todo ser humano, vez ou outra já se viu forçado a identificar (na escuridão, bem entendido!) essa linha tão tênue, se quisesse sobreviver. Forçado é uma boa palavra aqui, porque é tão trabalhosa essa arqueologia de achar o “meio” a ponto de ninguém empreender esse esforço se não for forçado. Mas a vida adulta nos coloca contra essa parede, pelo menos se queremos viver segundo a nossa consciência. E para não cair no precipício – ou lá ser jogado pelos demais – temos que tirar a nossa lâmpada do bolso e, com a luz fraca da pilha, passar o raio mil vezes sobre o terreno, até que este misterioso meio finalmente se revele.
Quais são os fatores que permitem a identificação desse espaço mínimo que dá esperança para o futuro? Um é o nosso histórico – ou, podemos dizer, nosso caráter. Antigamente, no ritual da confissão, o sacerdote dizia ao penitente: Que todo o bem que fizeste e todo o mal que sofreste seja causa para ti da vida eterna. É uma frase que também se aplica a essa situação. Os anos que passamos tentando, em circunstâncias normais, fazer o bem e evitar o mal já colocaram nossos pés próximos a esse meio. Quem anda com simplicidade, anda em segurança, diz o Antigo Testamento. Aquele que busca em seu dia a dia ouvir e seguir os ditames da sua consciência não está longe da porta estreita. Talvez ele não a perceba, mas seus instintos o orientem para aquela tênue linha e impedem que, por causa da vertigem, ele caia para a esquerda ou para direita.
Um segundo fator é a aceitação de todos os fenômenos secundários de um tal momento: confusão, tristeza, tentação, um sentimento de estupidez (“Não estou entendendo xongas”), dor e tudo o mais. Esses fatores não são decisivos, embora sejam inevitáveis. Como gostaria de poder mostrar-lhes uma antiga gravura da vida de Santo Antão do Deserto, na qual ele está sendo atacado de todos os lados por esses fenômenos, simbolizados por feras e monstros. E ele, preso, olha para frente e vê um ponto de referência (isto se percebe em seu olhar) – o único ponto não tomado por seus adversários – e fixa o seu olhar lá, disposto a permanecer lá para sempre, se necessário.
E essa imagem nos leva aos últimos dois fatores. Esse olhar de Antão é a oração, a oração mais preciosa: a de angústia. Jesus, Antão, eu e você, se Deus quiser, nos lembraremos de que há um Deus e que nosso olhar pode encontrá-lo, porque o dele já nos encontrou. A única coisa que eu retive das aulas de geometria é que dois pontos fazem uma reta. Quando o meu olhar tocar o olhar dele, que vem me buscando em minha angústia, a pequena linha se formará, o meio surgirá.
Finalmente, há esta disposição de aguardar até o espaço se abrir. Não sabemos por quanto tempo Jesus ficou parado entre os cidadãos de Nazaré, até que aquele meio se manifestasse – aquele fio, aquela corda bamba. Para nós, o tempo pode parecer muito longo. Podemos passar anos em um lugar intransitável; a porta estreita pode permanecer fechada. A grande filósofa judia Simone Weil descreve aflição como dor sem fim previsto. Temos que trazer roupa quente e roupa fria, cantil, cobertor e travesseiro.
O caminho do meio não é aquele caminho aristotélico entre o excesso e defeito, a aurea mediocritas. O caminho do meio é o buraco da agulha que tem que ser cruzado por nós, camelos; é uma nova criação que surge onde antes não havia nada; surge pela graça de Deus, nossos esforços de fidelidade, nossa oração sofrida e nossa paciência custosa. Os Salmos estão cheios de homens e mulheres, tais como nós, à beira do aniquilamento. Eles gritaram ao Senhor, dia após dia e, um dia, o meio apareceu. E eles passaram pelo meio e continuaram o seu caminho em paz”.
(*) Referência fundamental: BONOWITZ, Dom Bernardo, OCSO,
Eu vou para o Pai – reflexões para a vida, Editora Vozes, Petrópolis, 2009, pp. 131-135.
P.S. Tenho as mãos com bolhas abertas...ardem; doem-me as costas...; todos os músculos pedem horizontalidade...; provei o sacrifício da “corda”. Colocamos quase 12.000 telhas em cima de 11 tesouras! Amanhã com um almoço-festa concluiremos esta etapa da Nova Igreja do Bairro do Areal. Missão é isto? Também é isto. Foi um prodígio de dedicação em regime de semi-mutirão! Exausto e quase entregue a mim mesmo. Tudo porque, efetivamente, uma vez por outra, sei escolher exatamente o “Caminho do Meio”. Urgente decidir com mais evangelho e menos eu.
“Vive para a Ternura, sem ela nada ficará limpo. Se sentes o descompasso da afetividade; a angústia orante; sombras no teu agir: aguarda com a serenidade possível e escolhe o Caminho do Meio (Lc4,29-30)”
Ler: Lucas 4,21-30
Disposição (pode não ser lida...)
Dizem, e é verdade existencial, que é a Palavra que nos lê a nós seus leitores (na expressão consagrada ‘Ouvintes da Palavra’). Esta meditação tem uma dimensão inaudita. Como gostava de ser eu (oh peso estúpido do eu...) seu autor. Não sou. Mas vivo assim (e já vivi e viverei, futuramente, ainda mais) tudo o que ela encerra. Só isso importa. Entretanto, intuímos que há textos fundantes (guardo alguns, poucos, debaixo dos olhos/pés da consciência). Esta meditação na minha fragilidade/fortaleza, é um desses textos-alicerce. Dom Bernardo BONOWITZ (*) roubou-me a minha Alma... Saiba porquê. Quem encontrá-La, faça favor: devolva!?
“Levaram-no até o alto do monte sobre o qual a cidade estava construída, com a intenção de lançá-lo no precipício. Jesus, porém, passou no meio deles e continuou seu caminho” (Lc 4, 29-30).
“Se a gente tenta visualizar a situação na qual Jesus se encontrava no fim do Evangelho de hoje, é muito difícil imaginar aquele meio pelo qual Ele teria passado. Que Ele passou por um aperto, isto sim, mas como é que Ele conseguiu descobrir um meio, por meio do qual pôde passar, parece quase milagroso. E, de fato, acho que podemos chamar essa ação de Jesus de seu primeiro milagre – não um milagre físico, nem um milagre “miraculoso”, no sentido de ser consequência de uma intervenção divina, mas um milagre moral.
E o que é um milagre moral? É muito importante nós sabermos, porque é mais do que provável que o milagre moral venha a ser exatamente o tipo de milagre que todos nós iremos experimentar, e mais nenhum. Um milagre moral é uma decisão, uma postura, uma atitude boa, que a princípio não seria possível em dadas circunstâncias, mas acaba sendo. Num outro texto, Jesus diz que o homem bom tira coisas boas do bom tesouro de seu coração, e é assim que o milagre moral funciona. Colocado num aperto, em apuros, entre a cruz e a espada, onde aparentemente a única opção é ser jogado no precipício, o ser humano encontra – ou melhor, cria – um espaço que não existia antes. Vivia uma situação que era destruição garantida e, de alguma maneira, percebe a linha finíssima sobre a qual pode caminhar com segurança. E toma essa linha, segue-a, e continua sua peregrinação.
Esse espaço, esse meio, é difícil, terrivelmente difícil, de encontrar. Falo como alguém que, como todo ser humano, vez ou outra já se viu forçado a identificar (na escuridão, bem entendido!) essa linha tão tênue, se quisesse sobreviver. Forçado é uma boa palavra aqui, porque é tão trabalhosa essa arqueologia de achar o “meio” a ponto de ninguém empreender esse esforço se não for forçado. Mas a vida adulta nos coloca contra essa parede, pelo menos se queremos viver segundo a nossa consciência. E para não cair no precipício – ou lá ser jogado pelos demais – temos que tirar a nossa lâmpada do bolso e, com a luz fraca da pilha, passar o raio mil vezes sobre o terreno, até que este misterioso meio finalmente se revele.
Quais são os fatores que permitem a identificação desse espaço mínimo que dá esperança para o futuro? Um é o nosso histórico – ou, podemos dizer, nosso caráter. Antigamente, no ritual da confissão, o sacerdote dizia ao penitente: Que todo o bem que fizeste e todo o mal que sofreste seja causa para ti da vida eterna. É uma frase que também se aplica a essa situação. Os anos que passamos tentando, em circunstâncias normais, fazer o bem e evitar o mal já colocaram nossos pés próximos a esse meio. Quem anda com simplicidade, anda em segurança, diz o Antigo Testamento. Aquele que busca em seu dia a dia ouvir e seguir os ditames da sua consciência não está longe da porta estreita. Talvez ele não a perceba, mas seus instintos o orientem para aquela tênue linha e impedem que, por causa da vertigem, ele caia para a esquerda ou para direita.
Um segundo fator é a aceitação de todos os fenômenos secundários de um tal momento: confusão, tristeza, tentação, um sentimento de estupidez (“Não estou entendendo xongas”), dor e tudo o mais. Esses fatores não são decisivos, embora sejam inevitáveis. Como gostaria de poder mostrar-lhes uma antiga gravura da vida de Santo Antão do Deserto, na qual ele está sendo atacado de todos os lados por esses fenômenos, simbolizados por feras e monstros. E ele, preso, olha para frente e vê um ponto de referência (isto se percebe em seu olhar) – o único ponto não tomado por seus adversários – e fixa o seu olhar lá, disposto a permanecer lá para sempre, se necessário.
E essa imagem nos leva aos últimos dois fatores. Esse olhar de Antão é a oração, a oração mais preciosa: a de angústia. Jesus, Antão, eu e você, se Deus quiser, nos lembraremos de que há um Deus e que nosso olhar pode encontrá-lo, porque o dele já nos encontrou. A única coisa que eu retive das aulas de geometria é que dois pontos fazem uma reta. Quando o meu olhar tocar o olhar dele, que vem me buscando em minha angústia, a pequena linha se formará, o meio surgirá.
Finalmente, há esta disposição de aguardar até o espaço se abrir. Não sabemos por quanto tempo Jesus ficou parado entre os cidadãos de Nazaré, até que aquele meio se manifestasse – aquele fio, aquela corda bamba. Para nós, o tempo pode parecer muito longo. Podemos passar anos em um lugar intransitável; a porta estreita pode permanecer fechada. A grande filósofa judia Simone Weil descreve aflição como dor sem fim previsto. Temos que trazer roupa quente e roupa fria, cantil, cobertor e travesseiro.
O caminho do meio não é aquele caminho aristotélico entre o excesso e defeito, a aurea mediocritas. O caminho do meio é o buraco da agulha que tem que ser cruzado por nós, camelos; é uma nova criação que surge onde antes não havia nada; surge pela graça de Deus, nossos esforços de fidelidade, nossa oração sofrida e nossa paciência custosa. Os Salmos estão cheios de homens e mulheres, tais como nós, à beira do aniquilamento. Eles gritaram ao Senhor, dia após dia e, um dia, o meio apareceu. E eles passaram pelo meio e continuaram o seu caminho em paz”.
(*) Referência fundamental: BONOWITZ, Dom Bernardo, OCSO,
Eu vou para o Pai – reflexões para a vida, Editora Vozes, Petrópolis, 2009, pp. 131-135.
P.S. Tenho as mãos com bolhas abertas...ardem; doem-me as costas...; todos os músculos pedem horizontalidade...; provei o sacrifício da “corda”. Colocamos quase 12.000 telhas em cima de 11 tesouras! Amanhã com um almoço-festa concluiremos esta etapa da Nova Igreja do Bairro do Areal. Missão é isto? Também é isto. Foi um prodígio de dedicação em regime de semi-mutirão! Exausto e quase entregue a mim mesmo. Tudo porque, efetivamente, uma vez por outra, sei escolher exatamente o “Caminho do Meio”. Urgente decidir com mais evangelho e menos eu.
“Vive para a Ternura, sem ela nada ficará limpo. Se sentes o descompasso da afetividade; a angústia orante; sombras no teu agir: aguarda com a serenidade possível e escolhe o Caminho do Meio (Lc4,29-30)”
Pedro José. [Ano Sacerdotal – Entre Aspas, nº06].
Transcreveu: Pedro José, Chapadinha, 29-01-2010. Caracteres (espaço incluídos): 6983.
Transcreveu: Pedro José, Chapadinha, 29-01-2010. Caracteres (espaço incluídos): 6983.